#43 Carta ao Rui Zink
Dizem que ninguém escreve cartas a quem quer esquecer. Eu também acho: quem escreve a um amigo quer apenas reatar uma conversa interrompida. Voltemos às regras desregradas.

Rui, respondo-te aqui à carta de despedida que me escreveste, porque as palavras sempre serão o território da nossa amizade. Não há quases. Sei que te pareço jovem, mas da próxima vez que nos encontrarmos (já lá vamos ao futuro), encontrarás uma profusão de cabelos brancos. São a prova do (des)equilíbrio em que balanço, saltando entre carruagens. Da realidade e do sonho. Homo economicus e poesia. Os amigos também seguem dentro destas duas carruagens. Tu, sim, a partir de hoje tratamo-nos por tu (já caiu o senhor professor, depois o mestre, agora cai o você), estás, continuas a estar, dentro da carruagem da poesia. Abandonaste-a na estação das Interpretações Livres, por causa de duas ou três palavras. Que sentido faz perder de vista um amigo, uma voz por uma palavra que nem neste texto caberia? Nós, defensores da bondade e da paz na Terra, não podemos assobiar para o lado. Ainda mais nesta altura. Eu, pelo menos, com a idade que tenho, já não me dou a esse luxo. Agora, com a capa da alteridade vestida compreendo o timing infeliz e aceito o cartão amarelo. Tal como o Mersault de Camus, desorientei-me. Disparei. Muita luz nos olhos pode cegar. Na carruagem da poesia, caberá sempre quem saiu e quer voltar a entrar. Imagino que escrever uma carta de despedida seja uma perna dentro da carruagem, mas cuidado antes que a porta corte algum de nós ao meio, como aconteceu ao nosso amigo Visconde.
Nesta noite de Inverno, a mão treme — talvez de frio, está um frio do caraças, não está?, talvez de perplexidade pela carta que publicaste — enquanto me lanço neste texto. Não será uma carta ao mentor, porque não sou Franz, nunca quis um, já sou pai e tu também, mas há cinismos que não têm lugar na nossa carruagem. Não há espaço para isso, apenas abismo. E o conto do vinte vinte também continha o mise en abyme que roubei ao Vergílio Ferreira, lembras-te? Dizem que ninguém escreve cartas a quem quer esquecer. Eu também acho: quem escreve a um amigo quer apenas reatar uma conversa interrompida. Voltemos às regras desregradas: Eu pergunto, tu respondes. Tu perguntas, eu fico a pensar. Lançar a rede e esperar pelo peixe. Um exercício em forma de lição, um silêncio. Sentar para almoçar e ser almoçado num exercício piscatório. Alerta intelectual constante. Um email, um texto. Eu escrevo, tu sugeres. Um toma-lá-dá-cá com que qualquer aprendiz sonha. E agora o jogo vira epistolar.
O Rui Zink é esta possibilidade. É a máquina nacional de formar escritores. O Aurélio Pereira da literatura. Paradoxal como a folha do livro, porque num gesto é assertivo e confiante, mas adorador das incertezas e do verso de Pessanha. Também um jogador de xadrez, alguém que desvela o mundo inteiro na terceira pessoa, munido de um arsenal cultural e de uma biblioteca mental infinitos. Eu sei que estou a meter-me em sarilhos e oiço o Eco ao longe trovejar. Beber uma gota deste oceano pode contaminar qualquer um, puff és escritor. O colega do lado direito da carteira do Rui, que vive lá longe numa zona bem, costuma dizer que toda a gente escreve melhor do que fala, mas com o Rui isso é a grande mentira. Ele fala escrevendo. E ouve quem pode ler. Nem todas as lições são para todos os ouvidos já dizia o nosso amigo. O problema dos grandes escritores, panteão onde o Rui Zink habita, é este: curiosidade incessante pelos fantasmas da maldade. Não poderemos adivinhar se cabemos nas vestes dos fantasmas do outro. O Rui pegou numa pá e escavou, escavou até encontrar o Mal numa singela mensagem de whatsapp. O grande romancista encontra assim o Mal, o bom fascista que dormita dentro de nós, ainda antes sequer de o termos percebido, tal como dizem que a IA e a big data farão (fazem?) com todas as câmaras apontadas à nossa cabeça. Gostava de ter lido Joyce aos treze, como ele, ou a Agustina, mas andava perdido na cegueira coletiva que se injecta pelos recreios de Portugal desde que pedimos para andar de chinelos no inverno. Rui, não há amizades inocentes: preciso desses saltos altos, do esforço estimulado por alguém que tem uma cabeça sem borracha e não acredito que queiras perder outra voz na tua cabeça. Se fosse um coach motivacional com vibes de filósofo remataria: o desassossego da nossa amizade torna-nos melhores.
Quem ainda tem tantas tranças por desnovelar não se pode contentar com uma novela na gaveta, não é, Rui? Com demasiadas palavras presas na garganta a assombrar. O que vou dizer ao mundo? Porquê publicar? E a escrita é competição? É mesmo? E a verdade não se encontra na ficção que escrevemos nas costas dos outros, pois não? O maior lucro das letras não será apenas este insano prazer sem factura? Qual? O absurdo de andarmos à volta com as palavras a tentar fazer do texto um mundo. Sim, aqui mesmo, no texto, onde sempre apanharemos os amigos esquecidos da carruagem da poesia. E se por vezes as palavras cortam como navalhas, também são elas que dobram novos caminhos, e todos precisamos de uma história que nos ensine a olhar outra vez o mundo com olhos menos inocentes, mas nunca cínicos.
Não me despeço, Rui. E recuso o teu adeus. Os amigos não se despedem assim, a amizade não se rescinde; vão-se desinstalando pelos canos ou perdem-se pelos silêncios da vida instantânea (a arte também é efémera, não precisamos apressá-la). Mas cartas a despedir um futuro? A amizade não é matemática, está para lá da lógica dos contratos de compra e venda, por isso, escrever o fim de uma emoção é a verdadeira impossibilidade técnica. Outra vez: só a morte nos despede, o resto acontece. O Rui continua a ser meu amigo e eu, como aqui se comprova, sou seu amigo também. A amizade, como a literatura, vive de vazios e de subtexto. Entre um gesto e outro, caberá sempre o inesperado. Dentro dessa distância fixa-se a proposta de um almoço de cavaleiros. Amanhã, às 12h30, no teu restaurante favorito que rima com "paquete". Não te prometo um desfecho digno de romance, ou outro manuscrito chato, mas posso garantir-te provas — das boas — de que algumas amizades, tal como certos livros, nunca se despedem. Releem-se.
ps - se ainda assim esta amizade tiver encontrado o seu beco, quero que saibas que levarei nos meus textos tudo quanto ensinaste.
Com admiração e amizade, FMR