#66 Até que a IA nos separe
Por um mundo mais humano (defendido atrás de um ecrã).
O mundo é simples. Pão, pão, beijo, beijo. Dividimo-nos em bolhas binárias: causas ou culpas. Os bons e os maus e o Tiago é um dos bons. Ou dos maus? Tem vinte e cinco anos, dois cursos técnicos e uma mãe capaz de limpar casas que nunca serão dela (ela ainda não sabe, mas sonha). Por mais que trabalhe, por mais que sonhe. Votou num populista de extrema-direita nas últimas eleições. Ele não odeia imigrantes, o melhor amigo até é angolano e nem gosta de discursos enraivecidos. Votou porque lhe prometeram uma ruptura. A esquerda, durante décadas, prometeu e conquistou algo. Depois, mostrou que afinal não podia ser. A escolha de Tiago é um erro, não há mistério aqui. Há dois modos de encarar o problema. A culpa, da ausência de ferramentas intelectuais das pessoas para identificar charlatões políticos, ou a causa, de todas as falhas de Abril. O crescimento da extrema-direita e a expansão da inteligência artificial alinham-se — a ignorância, o ressentimento e o hedonismo transferiram a esperança para as soluções imediatas e lucrativas. Não se deve culpar o Tiago por errar quando a escola erra em demonstrar-lhe a anatomia do erro.
A Universidade do passado é a fábrica do medo futuro, basta ouvir o professor José Pacheco a aclarar, Não se pode mudar a educação sem mudar a lógica de poder que a sustenta. Sim, estamos a falar do capitalismo. Só chegámos a este estádio porque as pessoas (ou os consumidores-clientes?) não têm tempo para o ócio: ler, reflectir ou participar no progresso. Para ter sequer consciência do que é isto onde se vêem enfiadas. Paulo Freire, sem viver na era da IA, já adivinhava, Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as condições para a sua construção. Ora, se os testes podem ser respondidos em segundos pela IA, então não estão a testar nada que um humano deva estar capacitado no futuro. Estão apenas a replicar fórmulas passadas. Qual a escola para o futuro? Visitemos Norbert Elias, A eficácia dos estímulos perde-se quando o receptor não está preparado para os receber. A resposta pode ser então: formar um receptor humano. E se esse receptor for treinado para absorver, questionar, criticar e resistir à simplificação binária então teremos menos Tiagos à deriva na praça dos slogans. Menos ódio ao que é trans. Educar para ser humano é resistir à uniformização. Ou então, será apenas entretenimento financiado.
Uma rapariga escreve cartas a idosas que vivem sozinhas. Cartas escritas à mão. A máquina não entende isso — não por falta de capacidade, mas por excesso de lógica racional. O humano não se pode definir pelo cálculo matemático. Define-se pela capacidade de errar, pelo afecto, pela hesitação. O que nos distingue da máquina será a inutilidade dos nossos gestos. A máquina humana é imperfeita por vezes. A nossa defesa é essa: cultivar o defeito. O tempo com os outros é, talvez, o que ainda nos resta.
Nem luditas nem ultracapitalistas. Não queremos destruir as máquinas, as redes ou a AI. Mas recusamos o mundo construído ao seu redor. A leitura, a conversa, a dúvida, a biblioteca: nada disto é eficiente mas deve ser o centro da educação. Como se explica a um adolescente que a leitura de Os Irmãos Karamázov o pode salvar? Não se explica. Mete-se-lhe o livro à frente. Discute-se, pede-se oralidade, procura-se o humano. Um dia, na solidão, no momento exacto, lembrará o livro que lhe devolveu algo que nenhuma app oferece: a possibilidade da pergunta infinita. Apenas mortos, sem cultura, deixaremos de questionar.
A última razão para ter esperança será o Tiago começar a frequentar uma biblioteca pública depois de perder o emprego para uma IA que decidiu optimizar orçamentos. Lá dentro, entre o silêncio dos Karamazov e a rapariga da carta, descobrirá os textos que falam dele, dos outros, de como toda a humanidade pode ser enganada. E depois, perguntar-lhe-ão se não se sente traído pelo partido em que votou. A esperança, se existir, surgirá pelo desejo de nos apercebermos humanos. Se a democracia quiser sobreviver à máquina do populismo, terá de reconquistar essa frase — quero saber porque acreditei neles — e ensiná-la com o tempo que todos precisamos e fomos convencidos a ceder ao capital (no futuro se quisermos direitos poderemos comprá-los com a nossa carteira). Não nos cabe salvar o mundo com palavras. Mas talvez, com um abraço e um beijo, ainda salvamos o Tiago.
A nossa ágora é um infinito feed. Quem grita mais alto é ouvido. Se quiseres gastar um pouco dessa atenção com quem sussurra, ainda tenho alguns exemplares de Atrás da Escrita. É um livro sobre o que gravita à volta dos livros, sobre o nosso passado colonial, sobre o amor e ódio humanos e sobre o que atormenta quem cria. No fundo, sobre tudo aquilo que não se diz mesmo quando tudo está escrito. Se quiseres comprar um exemplar autografado fala comigo:
*folha
Olá, FMR, tenho andado submersa nos livros, só agora pude ler esta mensagem ( estava guardada), não tenho nada a acrescentar à sua reflexão,tomara eu que fossem deitados de uma avioneta numa praia qualquer e que todos os que pudessem, que correm a apanhar uma filha, o leiam e o partilhem. Afinal,se vem do céu é uma mensagem importante!
Já tinha dito que quero o seu livro. Um abraço
PS: agora é que vou ler o de ontem 👋