#65 E essa experiência de publicar um livro?
Como sobreviver ao sonho de ser escritor sem perder a vontade de continuar a escrever. Haverá maior sedução que levar a palavra directa à mente do leitor?
Dezembro: este manuscrito não era o primeiro, mas era o mais sincero. O que conciliava um esforço em agradar o leitor e a minha convicção literária. Um gesto de negociação. Intitulava-se “16.06” (nome do festival onde se desenrola o livro, que por mero acaso também é a data do meu aniversário, do Rui Zink e do Bloomsday), depois ficou Atrás da Escrita e estava guardado onde se escondem os textos que incomodam o autor: entre o entusiasmo inicial e a vergonha póstuma. Agora já foi, está aí. Era o meu segundo livro, mas seria o primeiro a ver a luz das estantes. O primeiro livro — aconselhava-me o Zink — deve ser como um abre-latas: sobre nós, sobre o que temos a contar ao mundo que nos vai descobrir. O que ele não percebeu (será que alguém perceberá?) é que tudo isso está escondido exactamente atrás da escrita. Desculpem, não ser a Maria Francisca Gama (nem melhor nem pior, apenas sou outro texto). Enviei o manuscrito, apesar do conselho, para editoras que admirava (Guerra e Paz ou para a Minotauro, da Almedina), e foi devidamente rejeitado. Com a elegância e a frieza de quem já leu demasiados manuscritos sobre jovens autores fascinados com o myse en abyme, os cameos e as hiperreferências a outros autores. Até que um amigo editor (que mistura no nome um animal venenoso e o órgão central do nosso corpo), desses que ainda acredita no livro como forma de vida, como fortuna da alma, avisou-me da chamada aberta da Mercador, nova editora nascida da parceria entre a portuguesa Traça e o grupo editorial brasileiro Caravana. Havia esperança no ar, e eu ainda não tinha lido as letras pequenas.
Janeiro: o contrato, o Word, o Gmail e o formulário. A seis de janeiro recebo um email com uma saudação calorosa e um contrato em anexo. Parecia uma convocatória para um jogo:
— Preencha seus dados (troque os “XXX”),
— Escreva sua biografia (até 400 caracteres),
— Contracapa (400 caracteres),
— Orelha (900 caracteres),
— Original revisado (em Word, claro),
— Nome do revisor,
— Foto em alta resolução (nada de selfies pixeladas),
— E tudo isso até 10 dias, se faz favor.
Assinei. Mandei. Senti que estava a entrar numa empresa de logística e não no mundo literário. Mas tudo como esperava, kafkiano enough, aliás o que estava a viver está descrito no próprio livro Atrás da Escrita. Melhor que viver a realidade apenas antevê-la. O entusiasmo venceu o perfeccionismo e avançámos. O texto já tinha sido revisto por mim, por amigos, e por uma leitora profissional que cobra por vírgula, daí estar confiante no resultado final. Encerrei o manuscrito em fevereiro sem conseguir ler mais uma única frase do seu miolo. Uma decisão apressada, como veremos de seguida.
Março: a capa, a reunião e a Snob. Março foi o mês em que o livro ganhou um rosto. Enviei moodboards e algumas capas que admirava (entre o tradicional, existencial e o pós-punk, uma confusão estética tal qual a minha cabeça) para a designer japonesa, a trabalhar desde São Paulo, se inspirar. Participei numa reunião por Google Meets com os editores — que se mostraram sempre presentes, atentos e disponíveis — e fui até a uma tertúlia da Mercador na Livraria Snob. Mal cheguei o editor deu-me uma cópia do livro. Dias mais tarde, apesar de não ter vontade nenhuma de voltar a ele, apercebi-me das gralhas, dos erros de diagramação, de pontuação e dos diálogos desestruturados. A revisão tinha falhado, alguns leitores ficaram com o livro estragado (as minhas desculpas, Rafaela, Laura, Karin) mas ainda tínhamos tempo para o livro final. Na Snob, falei sobre o processo de escrita do livro e sobre auto-ficção, juntaram-se autores e editores da Mercador e alguns leitores com ar de quem ainda lê livros ao invés de os colecionar numa estante perdida. Li uma página cheia de notas soltas. Apresentei-me. Sou o FMR, o meu livro vai chamar-se Atrás da Escrita. Disseram boa sorte, e acreditei. Conheci gente interessante e bebi vinho tinto.
Abril: o preço da fé são cinquenta exemplares. Adquiri alguns exemplares com desconto de autor. Uns vendi à família e amigos. Outros tenho para quem quiser comprar por aqui. Se estás aqui neste parágrafo, provavelmente serás um leitor potencial de Atrás da Escrita. O meu desejo é perceber que desconhecidos encontram os meus textos, como tem acontecido por aqui (e vêm mais cinco e mais cinco). O livro estará também em algumas livrarias — mas a verdade é que os livros não nascem nas livrarias, estão lá apenas à espera de ser ressuscitados pelos leitores. Atrás da Escrita nascerá do entusiasmo dos primeiros leitores, em newsletters como esta ou na teimosia de quem continua a preferir frases a likes.
Junho: pré-venda e pós-ilusão. O livro entrou em pré-venda. Um momento de alegria discreta, tipo vitória moral num empate sem golos. Fiquei a saber, nestes meses que o autor deve rever o seu texto como pode, deve lutar por apresentações, por notícias e estar presente nas livrarias que pretende, que deves dar a cara pelo que escreves e que ser autor de uma editora independente é fodido. Somos como os operários da Lisnave, foi um divertido conselho que ouvi. Publicar assim em Portugal é como fazer praia em pleno inverno: coisa para doidos. Mas alguns (milhares?) persistem. Em ler e partilhar fora dos ecrãs. Somos nós, os resistentes dessa arte do silêncio e da liberdade que tanto amamos: os objectos de capa dura que continuam a estragar a vida às árvores.
Epílogo:
A nossa ágora é um infinito feed. Quem grita mais alto será ouvido. Se quiserem gastar um pouco dessa atenção com quem sussurra, Atrás da Escrita está disponível para pré-venda com 10% de desconto. É um livro sobre o que gravita à volta do livro, sobre o nosso passado colonial, sobre o amor e ódio humanos e sobre o que atormenta quem cria. No fundo, sobre tudo aquilo que não se diz mesmo quando tudo estiver escrito. Se quiseres comprar um exemplar autografado fala comigo:
De JP Cuenca
“Uma sátira sem pudor que despe o mundo literário e cospe nos seus dogmas — este livro não quer agradar, quer acordar.”
De Guilherme P. Henriques
“Este romance de estreia apresenta-nos um escritor cujo engenho consiste, entre o mais, em saber falar das coisas por dentro falando delas por fora, e em saber falar das coisas por fora falando delas por dentro.”
De Rui Cardoso Martins
“Este livro é uma feira literária virada do avesso, onde o humor é bisturi e o autor, finalmente, deixa de ser só leitor — e arrisca tudo.”